Os cantos de Alissa
Gostava de brincar com as bonecas pequeninas, elas moravam numa caixa de sapatos do pai, era uma casa grande, maior que a nossa, se fôssemos pequeninos como as bonecas. Eu carregava a caixa para todos os cantos, não eram muitos cantos, mas como chovia lá fora, tinha de usar os cantos de dentro. A mãe estava trabalhando, o pai voltou para casa mais cedo, machucou o braço. Alissa, sabe onde tem curativo? O pai não sabia direito onde a mãe guardava os curativos, o pai não sabia nada o que a mãe guardava. A mãe guardava tudo. É, ela guardava tudo, e tudo em pequenas caixas, que só ela sabia o que tinha dentro. Tinha a caixa de costura, com tudo que precisava para arrumar as roupas ou pregar um botão, tinha agulha de todos os tamanhos, mas linhas não tinham muitas cores, a mãe não gostava de cores. O pai não queria linha, nem agulha, não ia precisar costurar o machucado no braço. Pai, quer linha? Alissa, quero a caixa com curativos, se não colocar um curativo continuará a sangrar. E sangrava, muito, ele lavou o braço na pia branca do banheiro e aquilo me pareceu um mar vermelho. Pai, tem muito sangue fora do braço, tem minha filha, eu cortei com serrote. Pai, queria cortar o braço fora? Não, Alissa! Foi sem querer! Ah tá, pai olha a toalha, tá toda manchada, a mãe não vai gostar. Sua mãe não gosta de nada mesmo, vai lá no armário dela pegar o curativo.
O vermelho. Era sangue, mas tinha cor de vinho, a avó cortava a carne fresca do boi, um pedaço grande, pegava a faca e ainda tinha muito sangue na carne. Olha aqui, que beleza! Sente o cheiro? É cheiro de carne fresca! Sangue tem cheiro, sabia? Eu sentia o cheiro, mas todo sangue tem o mesmo cheiro, vó? Não, este aqui tem cheiro fresco, uma delícia, seu avô falava que eu sou da família do Drácula, seu avô gostava de ler esse monte de livros, enquanto eu cortava as cabeças das galinhas fora, ele falava do Luís. Você cortou a cabeça desse Luís, vó? Eita menina! Era o Luís lá da França, cortaram a cabeça dele naquele negócio que não lembro o nome, que cortava a cabeça das pessoas na rua. Eu nunca vi uma coisa dessas na rua, vó. Deus o livre! Aqui não tem disso não, nem sei quando o vô falou que foi isso, mas era tempo pra trás, que ele nem viu. O vô gostava de ler, ele sabia de muita coisa que ele não viu no tempo certo.
O sangue do braço do pai não era igual ao sangue da carne fresca da vó, que cortava o boi. O pai cortou o braço com o serrote, a vó cortava a carne com uma faca. Se a vó pegasse o serrote e o pai a faca? Alissa, preciso do curativo, você sabe onde está? Sei, a vó cortou o dedo outro dia com a faca, não queria cortar o dedo fora, mas quase, aí o sangue dela juntou com o do boi, que ela tava cortando, e ficou tudo vermelho, mas já tava tudo sujo, não dava pra saber qual era o sangue da carne da vó, qual era o sangue da carne do boi. Eu não vi o boi, mas eu vi a vó com cara de dor, apesar da vó ser acostumada a ter dor, ela tem dor nas costas de carregar o boi, de matar o Luís, talvez, mas a vó falou que o vô falou que ela gosta de tomar sangue igual o Drácula, então ela deve ter muito sangue, muito mais que o boi, mais que o pai. Alissa pegue o curativo no armário da sua mãe. Tá bom, tô indo. No quarto da mãe não tem sangue, é tudo limpinho, tudo em caixas. As caixas não têm nomes, e são várias. Tem mais caixas do que cantos na casa, a casa não é grande, mas é cheia de caixas.
O quarto da mãe tem cheiro de flor, e não tem flor, o quarto da mãe tem cheiro de talco que tem cheiro de flor, que tem cheiro de rosa. O quarto da mãe é gelado. Achar o curativo, abrir as caixas e achar o curativo.
Molhado. Alissa, saia da chuva, não percebe que está ficando toda molhada? Molhada, molhado, eu gosto de ficar na chuva, não está gelado, só molhado. A água quando é mais quente não é gelada, tem lugar que seco é mais gelado que fora aqui no molhado.
Só está molhado vó, não está gelado. Eu sei menina, mas sua mãe chega e vê sua roupa toda molhada, fala que a velha não tem cabeça no lugar, que se tosse à noite a culpa é de quem deixou você ficar na chuva, como se a tosse não fosse de dentro e sim de fora.
As bonecas vão para a caixa, vamos, uma, duas, três. Eu vou para a caixa, uma, duas, não, uma só. Uma vez escutei a mãe falando ah minha filhinha, ah minha filhinha querida, ela estava dentro do quarto, do quarto dela, eu tava fora, ela não sabia onde eu estava, e ela falava ai minha filhinha. Mamãe, mamãe. Eu pensei em entrar, e falar, mãe tô aqui, aqui mãe, mas não entrei, fiquei quieta escutando ah minha filhinha, a mãe achava que eu tava lá fora, mas começou a chover, eu entrei. Gostei que a mamãe falava ai minha filhinha, mas quando coloquei a mão na maçaneta da porta, olhei pro canto no chão, no canto bem no canto tinha uma moeda, cor de marrom, peguei e sai correndo. Vó, olha o que eu achei! A vó olhou a moeda, ah menina, você tem muita sorte sabia! Os olhos da vó se encheram de água. Vó, por que tem água nos seus olhos, você está triste? Falou que eu tenho sorte e tá triste porque sou eu que tenho sorte e não você? Eu te dou a sorte, não chora. Oh minha Alissa, falou isso e a água acumulada na beiradinha do dentro dos olhos escapou para fora, e caiu na sua blusa verde.
Não muito brilhante, mas bonita, marrom, grande, a moeda do vô. Alissa, essa moeda era do seu vô. O vô era rico então vó. Os dentes da vó que ela ainda tinha se mostraram na boca pequena dela, parecia que ela estava sorrindo. O vô era muito rico Alissa, de saúde e das palavras, ele lia tudo aqueles livros que o patrão dele tinha deixado pra ele, que a família não quis mais saber depois que o velho morreu. O vô falava que seu Machado era muito inteligente, que até escrevia umas coisas. Eu escrevo também vó. Sim Alissa, você é perguntadora igual era o vô. Mas eu não escrevo só pergunta, eu já escrevo outras coisas também. A moeda marrom, no canto da porta, brilha não, grande é, moeda marrom, sorte é. Tá vendo vó, eu faço poema.
Alissa, agora, o curativo! Tá bom pai, mas espera, a sorte, cadê a minha sorte? Sorte Alissa? Você tem sorte de eu estar machucado e não poder te bater Alissa! A sorte estava em meu bolso, achei, era a sorte que não me deixou abrir a porta do quarto da mãe aquele dia, dia que ela chamava minha filhinha, que agora estava comigo, que era do vô, vó, me conta a história da sorte do vô.
O vô Alissa, o vô era pequeninho quando veio pra cá, com a mãe e o pai, fugidos lá do outro lado do mar. O vô era bebê menos de ano, o vô mesmo não sabia muito, ninguém sabia muito da família dele. Seu Machado e Dona Maria contavam que o casal fugiu da Itália, todo o dinheiro que tinham colocaram no papel que tava escrito que podiam entrar naquele barco grande e ficar muitos dias balançando no mar, presos na parte de baixo, quase sem comida, com muita gente ficando doente e aí iam jogando os defuntos tudo no mar. No mar, vó? Pode enterrar gente no mar? Era o único jeito. Colocavam na caixa e jogavam no mar? Sem caixa Alissa, direto na água. Sem caixa, sem cantos, os braços soltos, cabeças pra cima ou pra baixo? Deve ser estranho enterrar no mar.